Por Luís Felipe Miguel, professor titular de Ciência Política na Universidade de Brasília.
Políticos e analistas reagem com surpresa ao “fenômeno” Marina Silva. Ela desafia a continuidade dos governos do PT, joga o PSDB no caminho da irrelevância e ameaça chegar à Presidência da República num vazio de partidos e movimentos organizados, amparada apenas em seu próprio carisma – a palavra, que designava originalmente o “dom extraordinário e divino concedido a um crente”, segundo a definição do Houaiss, cabe como uma luva na candidata.
Muitos já apontaram um paralelo, na nossa história política recente. Na primeira eleição presidencial após a redemocratização, um candidato também empunhou a bandeira vaga da oposição a “tudo o que está aí”, também prometeu um Brasil novo, também dividiu a política em bons e maus, também apresentou a si mesmo como salvador, por força apenas de suas qualidades pessoais. Mas Collor aproveitou uma janela de oportunidade, farejando o clima de opinião preponderante na época e se adequando a ele. Já Marina, que não hesita em se afirmar ungida pela Providência Divina e reivindica uma conexão especial com o sobrenatural, parece acreditar, ao menos em parte, na persona que sua propaganda criou.
É próprio dos mitos políticos que eles se coloquem contra a própria política. Afinal, a política é o espaço em que se manifestam os conflitos presentes na sociedade: conflitos entre interesses e valores diversos, efeito de um mundo social tão plural e tão desigual. O discurso mítico recusa o conflito e, em seu lugar, propõe a fantasia de uma sociedade harmonizada consigo mesma.
No entanto, o conflito não é uma opção: ele nasce na dinâmica da vida social. A opção é entre expressar as discordâncias – lembrando que a democracia nasce do “reconhecimento da legimidade do conflito”, como dizia o filósofo Claude Lefort – ou, ao contrário, impedir que ela se manifeste, pela repressão ou pela manipulação. Ao assumir o discurso da “união”, da anulação das diferenças, Marina se coloca do lado da antipolítica. Não é uma recusa ao atual sistema político, com seus vícios e problemas. É uma recusa à política enquanto tal. Uma trilha que começa no fetiche da união, passa pela estigmatização do dissenso e chega no fascismo.
Não se trata de dizer que Marina percorreu todo esse caminho, embora a combinação entre desprezo pela política e messianismo seja particularmente perigosa. Mas, ao abraçar o discurso da antipolítica, ela apenas requenta um antiquíssimo recurso da demagogia política.
A vagueza extrema das propostas apresentadas pela candidata ao eleitorado completa o figurino. Afinal, propostas necessariamente rompem com a ficção da transcendência do conflito: elas acabam por desagradar grupos e interesses. Marina andou rápido nessa direção. Jogou-se alegremente nos braços transgênicos de seu novo vice, cercou-se de herdeiras de bancos e de economistas de DNA tucano. Mesmo o discurso aguado do “desenvolvimento sustentável” – a fórmula para conciliar a proteção ambiental com a manutenção do sistema capitalista – perdeu a pouca substância que tinha e virou um slogan vazio. A imagem da candidata se liga apenas ao intangível: o “bem”, o “novo”.
Mas é errado dizer que Marina não tem propostas. Sua campanha afirma compromissos com os interesses de sempre, reforçando os laços com o capital financeiro, fazendo um grande esforço para se mostrar confiável para o “agronegócio” (o nome bacana do antigo latifúndio). O que não há são propostas nítidas apresentadas ao cidadão comum, nos programas de rádio e TV, nos eventos de rua. Já apoio do banco Itaú, da família Bornhausen ou do pastor Silas Malafaia nunca é dado sem muita clareza do que virá em troca.
O crescimento meteórico de Marina é fruto da despolitização do debate político no Brasil, do qual o PT se tornou cúmplice quando fez sua opção preferencial pelas técnicas do marketing eleitoral. Agora resta saber se, nas semanas que faltam para a eleição, será possível mostrar que um governo orientado para os rentistas só pode prejudicar os trabalhadores ou que um governo aliado aos fundamentalistas não pode fazer bem para as mulheres ou a população LGBT.
Um eventual governo de Marina Silva, assim, aponta para um tripé político, ao lado do tripé macroeconômico ortodoxo exigido pelo capital. É a aposta no contato imediato entre a líder e a massa, desprezando as instituições intermediárias; o apoio dos líderes políticos religiosos, que encontram nela uma aliada para sua pauta moral conservadora; e as concessões ao grande empresariado, cujos interesses não serão contrariados. É a receita de Collor ou, antes dele, de Jânio Quadros – os dois governos mais desastrosos que o Brasil elegeu pelo voto. De “novo”, como se vê, Marina não tem as ideias, nem as práticas, nem mesmo a retórica.