O liberalismo brasileiro erra ao se concentrar somente na economia
A privatização de bancos e empresas estatais foi a tônica de seminário recente (15/3), “A nova economia liberal”, organizado pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. O presidente do Banco do Brasil, Rubens Novaes, defendeu a privatização do próprio banco, bem como o presidente da Petrobrás, que também disse que a estatal deveria ser privatizada.
O debate sobre a privatização, de conotação liberal, ganhou impulso no Brasil democrático a partir da campanha de Fernando Collor, em 1989. O Plano de Reconstrução Nacional de Collor incluía, entre outros pontos, “um programa de privatização e redução do estado”. Essa e outras medidas liberais tinham o objetivo de “expor o país às forças de mercado”. Em Janeiro de 1990, um editorial do jornal O Globo apresentou a privatização como uma maneira de "transformar as atuais estatais em companhias mais dinâmicas (e menos dependentes do Erário), além de levantar recursos que o Estado necessita para cobrir seu imenso déficit crônico”.
Qualquer semelhança não é mera coincidência. O governo atual, com a representação do “ultra-liberal” Paulo Guedes, pode ser visto como mais um capítulo de uma tradição iniciada em 1989, que traz ao debate público brasileiro ideias como reforma do Estado, abertura, privatização, desregulamentação etc., no contexto do fim da Guerra Fria e da redemocratização.
Não se discute a importância dos preceitos liberais clássicos para o desenvolvimento econômico das sociedades. São muitos e notórios os exemplos de sucesso de políticas econômicas liberais na história econômica mundial. É um erro, entretanto, tratar medidas tomadas para contextos específicos como preceitos universais e a-históricos. A relação do Estado com a economia não deve ser pensada a partir de um credo, mas analisada e debatida caso a caso e em cada contexto.
Não é à toa que, nesse sentido, o liberalismo entendido a partir do ponto de vista político (como também do ponto de vista filosófico) apresenta maior potencial de transformação das sociedades, podendo proporcionar, inclusive, estabilidade a todo o sistema social, político e econômico. Afinal, uma forma básica de se alcançar segurança e estabilidade no médio e no longo prazo é o reforço de valores e instituições. Enquanto os agentes passam, as estruturas ficam.
Nesse contexto, o liberalismo tem muito a contribuir para o reforço e o aprimoramento institucional brasileiro. Sua noção de igualdade é poderosa contra um dos países mais desiguais do mundo, em todos os sentidos. Seu ideal de liberdade cai como uma luva contra as restrições de movimento e desenvolvimento pessoal no Brasil. A noção liberal de pluralidade tem muito a dizer a uma sociedade tão diversa e violenta como a nossa. O reforço de valores políticos liberais e assim da própria democracia liberal no país seria de grande valia ao servir de referência para a atuação das instituições, em todos os campos, seja na Política, Justiça, Educação, na Segurança Pública ou mesmo na Economia.
No entanto, nossos liberais, absolutamente restritos ao plano econômico, estão alinhados com uma plataforma que desde muito tempo apresenta desprezo por noções básicas de igualdade, liberdade, pluralidade entre outras do liberalismo político, com declarações explícitas de apoio à intolerância, à violência e ao autoritarismo da força e da arma. O oposto de toda a filosofia liberal. Não à toa, a Economist relacionou Jair Bolsonaro à “perversão do liberalismo”, comentando como “a combinação de autoritarismo político e economia liberal [free-market economics] não é nova no Brasil”.
Tema da campanha presidencial vitoriosa de Bill Clinton em 1992, contra George Bush (pai) e a primeira intervenção no Iraque, "It's the economy, stupid" acabou se tornando um mantra para muitos círculos liberais desde então. Naquele momento, a plataforma democrata explorou a recessão local, impedindo a reeleição de Bush, que vinha de uma bem sucedida operação militar internacional, com a participação de 35 países contra a anexação do Kuwait pelo Iraque de Saddam Hussein. Em março de 1991, no ano anterior à campanha presidencial, o governo Bush apresentava quase 90% de aprovação.
O lema da campanha Clinton se mostrou feliz naquele momento, mas isso não significa que seja válido em qualquer contexto. Talvez seja mais fácil dizer "é a economia" em um país de instituições mais maduras e de desenvolvimento político mais estável. Muito provavelmente é de se preocupar como ficaria uma nação totalmente privatizada, desprovida de valores e instituições políticas liberais. Na verdade, os liberais no Brasil (e também na América Latina), ao se aliarem a figuras como Fernando Collor e Jair Bolsonaro, acabam por por denegrir o próprio liberalismo, minar o desenvolvimento e o amadurecimento institucional brasileiro, reforçar uma oposição antiliberal prejudicial ao país e perpetuar nossa crônica instabilidade.