"O Brasil depois da Guerra Fria" insere projeto de estabilização da economia em um espectro mais amplo de transformações relacionadas com a mudança de rumo no ambiente internacional.
No último dia 1o, o Real completou 20 anos. Depois de cantar o hino nacional em supermercados, a população viu a inflação derrotar sucessivamente todas as tentativas do poder público de controlar os preços, até o início do Plano Real, em fevereiro de 1994 (a moeda só seria efetivamente estabelecida 5 meses depois). Em janeiro de 1989, por exemplo, quando Maílson da Nóbrega assumiu o Ministério da Fazenda e pôs em prática o seu Plano Verão, a terceira tentativa do governo Sarney de combater a inflação, a correção dos preços estava no patamar de 35% ao mês. Quando Fernando Collor de Mello foi eleito, a inflação mensal estava acima dos 45% ao mês. Cálculos do professor Gustavo Franco, presidente do Banco Central entre 1997 e 1999, sugerem que a correção dos preços chegou a 20.759.903.275.651% entre abril de 1980 e maio de 1995. O livro "O Brasil depois da Guerra Fria: Como a democracia transformou o país na virada do século", sugere que o processo de estabilização da economia esteve inserido em um espectro mais amplo de transformações políticas, econômicas e sociais relacionadas com a mudança de rumo no ambiente internacional.
Leia abaixo um trecho do livro:
Apesar do controle, o crescimento do comércio internacional brasileiro foi constante nas últimas décadas do século XX. O Brasil chegou a 1980 importando muito mais do que nos anos 1950, depois de um movimento claro de internacionalização que ocorreu entre meados dos anos 1960 e o início dos anos 1980, quando a crise da dívida atacou as contas externas do país. O Brasil importou US$ 2,5 bilhões em 1970, US$ 22 bilhões em 1980, quase US$ 50 bilhões em 1995, mais de US$ 90 bilhões em 2006 e mais de US$ 170 bilhões em 2008.
Nas exportações, a mudança foi mais gradual. As vendas cresceram apenas 4% entre 1953 e 1965, mas aumentaram significativamente a partir daí: US$ 2,7 bilhões em 1970, US$ 20 bilhões em 1980, US$ 31 bilhões em 1990 e US$ 73 bilhões em 2003. Além disso, nesse período, a composição da pauta mudou, tornando-se mais industrializada. Enquanto os industrializados representavam apenas 25% dos produtos exportados em 1970, trinta anos depois correspondiam a quase 75%.
Mesmo assim, apesar da internacionalização crescente experimentada pela economia brasileira entre 1965 e o início dos anos 1980, a grande reforma nas relações econômicas internacionais do país ocorreu somente no fim do século. No comércio, a expressão principal da mudança foi a redução tarifária. Um processo de liberalização comercial começou a ser implementado em 1988 e ocorreu em três ondas: a primeira, em 1988-89, quando a tarifa média nominal3 de 57,5% foi reduzida para 32,5%; a segunda, mais significativa, em 1991-93, quando a mesma tarifa caiu para 13,5%, acompanhada de redução acentuada das barreiras não tarifárias; e a terceira, em 1994, no início do Plano Real, quando a tarifa média nominal chegou a 11,2%.
Nas importações, houve nitidamente uma mudança de paradigma. Durante o interregno Fernando Collor, por exemplo, foi abolida uma lista com quase 1.300 itens cujas importações eram proibidas, e um novo sistema de comércio, somente tarifário, começou a vigorar no Brasil, em maio de 1990. Na lista dos bens liberados estavam automóveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, produtos químicos, óculos, relógios e brinquedos. Em julho, foram extintos todos os programas especiais de importação. A reforma seguiu em frente e todos os produtos importados tiveram reduções graduais nas suas alíquotas ao longo de quatro anos, para uma média de 20%, e não de 40%, como vigorava. As exceções foram os produtos de informática e tecnologia de ponta.
Nas finanças, o investimento estrangeiro, que sempre teve participação importante na economia brasileira desde os anos 1950, explodiu a partir da primeira metade da década de 1990. Passou de um volume próximo a US$ 13 milhões nos anos 1940 para US$ 102 milhões nos anos 1950. Chegou a pouco mais de US$ 2 bilhões de média anual no início dos anos 1990, aumentou para US$ 12 bilhões em 1995 e superou os US$ 40 bilhões no ano 2000.
Nesse contexto de transformação financeira, há também os investimentos estrangeiros em bolsa, que causavam uma verdadeira revolução na economia dos países emergentes na virada do século. Se em 1986 o valor total de investimentos estrangeiros nas bolsas dos países emergentes não passava de US$ 700 milhões, em 1993 esse mesmo valor alcançaria a cifra de US$ 48,5 bilhões. No meio desse furacão, alimentado por políticas macroeconômicas de estabilização, pela evolução da liquidez internacional, mas também por novos caminhos institucionais abertos à entrada de capitais, como as sociedades de investimento, os fundos de investimento, as carteiras de valores mobiliários, os fundos de renda fixa, os contratos de câmbio etc., ocorreu uma expansão significativa na capitalização do mercado brasileiro. O valor total das companhias brasileiras negociadas em bolsa cresceu noventa pontos percentuais entre 1983 e 1993.
A política externa brasileira também sofreu, no fim do século XX, uma mudança significativa de perfil. Alguns estudos do campo afirmam que a etapa inaugurada em 1990 corresponde, de fato, “à ruptura de um consenso”. Transformações externas e internas afetariam a base de sustentação e legitimação do modelo dominante. O novo contexto incluía o fim da Guerra Fria, a globalização e o esgotamento do paradigma tradicional de desenvolvimento. Além disso, havia o próprio processo de redemocratização do país.
O Brasil assumiu, assim, a responsabilidade de atualizar sua agenda internacional de acordo com as novas questões e o novo momento pelo qual o mundo passava. A mudança incluiria, por exemplo, a aceitação do país aos padrões internacionais de meio ambiente, propriedade intelectual e proliferação nuclear. Nesse contexto, o Brasil hospedou no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, e assinou o acordo que criou a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares, em 1991. Além disso, comprometeu-se com o Acordo Nuclear Quadripartite de Salvaguardas, em dezembro de 1991, aprovado no Senado em fevereiro de 1994, e assinou o Tratado para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina, mais conhecido como Tratado de Tlatelolco, ratificado em agosto de 1994. O país também ingressou no Regime das Nações Unidas de Controle de Tecnologia de Mísseis, em 27 de outubro de 1995.
A transformação é clara. Até o fim do governo José Sarney, a política externa brasileira tendia a tomar posições consonantes com aquelas do G-77 e, em certa medida, ainda expressava características da postura independente da era Jânio Quadros-João Goulart, como no reatamento das relações diplomáticas com Cuba, em 1986, e nas trocas comerciais realizadas com o Iraque de Saddam Hussein. A partir de 1989 e ao longo dos anos 1990, no entanto, o Brasil passou a mostrar um novo comportamento de política externa em temas antes sensíveis ao país, uma nova política de comércio internacional de tarifas mais baixas, praticamente desprovida de barreiras não tarifárias, uma nova política industrial e um novo Código de Propriedade Industrial. A intenção declarada era retirar o controle direto do Estado sobre certos setores da economia e retomar as negociações da dívida externa em um novo patamar.
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