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  • Arthur Ituassu

O contexto atual brasileiro no cenário histórico global - ou como chegamos até aqui

Atualizado: 20 de mai. de 2021

Lendo Jair Bolsonaro por meio de John Mearsheimer

A tragédia sanitária, social, ecológica, política e econômica que o Brasil vive hoje, de natureza brutalmente óbvia e representada nos números de mortos pela Pandemia, na fome e no desemprego, ou mesmo na chacina de Jacarezinho, invariavelmente impõe a questão de como chegamos até aqui. O que nos levou a tamanho desastre? A pergunta soa ainda mais importante à medida que nos aproximamos de 2022, marcado pelas eleições e o bicentenário de nossa Independência. A conjunção faz urgir uma autorreflexão nacional e entender melhor o caminho percorrido nos ajuda a pensar sobre os processos sociais que informam nosso desenvolvimento histórico.


Nesse contexto, pouca atenção foi dada no Brasil à conferência "Liberalism and Nationalism in Contemporary America" (Liberalismo e nacionalismo na América contemporânea), proferida por John Mearsheimer, no fim do ano passado, por ocasião da homenagem que recebeu da Associação Americana de Ciência Política (American Political Science Association - APSA) com o Prêmio John Madison (John Madison Award). Mearsheimer, professor da Universidade de Chicago, é uma das principais referências contemporâneas de teoria política e relações internacionais e o Prêmio John Madison é concedido a cada três anos aos principais nomes do campo nos Estados Unidos, tendo já premiado autores importantes como Robert Keohane, Jane Mansbridge, Kenneth Waltz e Robert Dahl.


Em sua conferência, Mearsheimer tratou da vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos, e da decisão britânica de deixar a União Europeia, o Brexit. Ocorridos em 2016, esses eventos são considerados hoje marcos históricos de um processo global de fortalecimento de plataformas populistas de extrema direita que pressionam as instituições liberais, contaminam a esfera pública e ameaçam o consenso democrático. Além de Trump e o Brexit, percebe-se o fenômeno na chegada de Marine Le Pen ao segundo turno francês, em 2017. Na vitória da aliança de Fidesz-KDNP nas eleições húngaras de 2018, que manteve Viktor Orbán na chefia de governo. No expressivo sucesso do Partido Lei e Justiça polonês no pleito de 2019, quando o grupo de Jaroslaw Kaczynski obteve o maior percentual de votos (43%) de um partido desde a democratização da Polônia, em 1989. O fenômeno também aparece na América Latina, com as eleições de Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018, e de Nayib Bukele, em El Salvador, em 2019.


Analisando os eventos ocorridos em 2016, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, Mearsheimer argumenta que ambos devem ser entendidos no contexto da tensão entre nacionalismo e liberalismo, que para o autor se intensificou pouco a pouco de modo quase desapercebido ao longo da virada de século. Em uma perspectiva mais ampla, o argumento principal da conferência foi de que um forte desequilíbrio a favor do liberalismo desde o fim da Guerra Fria se tornou uma ameaça à ideologia nacionalista, para o autor, a mais poderosa ideologia política do mundo moderno.


Segundo Mearsheimer, o nacionalismo é mais poderoso que o liberalismo por algumas razões. Em primeiro lugar, a natureza social (não individual) dos seres humanos. Nações, como qualquer outro grupo social, são veículos de sobrevivência essenciais para o bem estar dos cidadãos, que, compartilhando de uma cultura comum, podem cooperar entre si de forma mais fácil e eficiente, maximizando assim as chances de assegurar as necessidades básicas. Além disso, o liberalismo não se apresenta tão eficiente quanto o nacionalismo como uma ideologia capaz de mediar disputas e conflitos. A promoção liberal da norma da tolerância e de um Estado limitado a manter a ordem e proteger direitos não é capaz sozinha de mediar as enormes diferenças que surgem das múltiplas interações sociais que se dão no âmbito de um Estado-nação contemporâneo. Nesse sentido, o nacionalismo é essencial porque provê uma cultura comum e uma narrativa existencial que constroem laços entre as pessoas.


Ao mesmo tempo, o liberalismo impõe algumas ameaças ao nacionalismo. Em primeiro lugar, a ideologia apresenta um claro componente universal. A partir da noção de que os direitos individuais são inalienáveis, nações liberais vão se preocupar mais com os direitos dos indivíduos ao redor do planeta. O que torna o excesso de liberalismo ameaçador ao nacionalismo é seu potencial de enfraquecer a identidade nacional, a tendência dos cidadãos de se identificarem com sua nação. Isso, por conseguinte, pode levar a problemas de coesão social ou solidariedade nacional. Para Mearsheimer, o declínio da identidade nacional faz desmoronar os laços culturais e subjetivos que mantêm a nação coesa e, não há dúvida, os 25 anos após o fim da Guerra Fria, chamados nas relações internacionais de "momento unipolar", podem também ser vistos claramente como um "momento liberal".


São muitas as representações do liberalismo na virada do Século XX para o XXI. O governo republicano Ronald Reagan, nos Estados Unidos, entre 1981 e 1989, e o domínio conservador da política britânica, sob o comando da primeira-ministra Margaret Thatcher, entre 1979 e 1990, são marcos históricos do momento. Bem como a obra de Francis Fukuyama, "O fim da história", publicada em 1992. No Brasil, vale lembrar que as eleições de 1989 também foram marcadas pelo discurso liberal, oportunisticamente utilizado pelo então candidato Fernando Collor de Mello (PRN).


De fato, o ano de 1989 pode ser facilmente percebido como uma referência original para o desenvolvimento liberal das décadas seguintes (sobre isso ver "O Brasil depois da Guerra Fria: como a democracia mudou o país na virada do século"). Em meados dos anos 1990, a ideologia vai informar a plataforma dos "novos democratas" de Bill Clinton, nos Estados Unidos, e a transformação do trabalhismo britânico liderado por Tony Blair e sua "terceira via". No Brasil, após o fracasso do governo Collor, os governos de Fernando Henrique Cardoso e a "Carta ao povo brasileiro", de 2002, onde Luís Inácio Lula da Silva consolida um novo perfil ao seu Partido dos Trabalhadores (PT), são manifestações claras de nossa trajetória liberal.


Quatro forças liberais, no entanto, segundo Mearsheimer, avançaram em demasia, propiciando espaço às manifestações nacionalistas reacionárias nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e também em outras partes do mundo. Essas forças são o individualismo, o universalismo, o surgimento de uma elite transnacional e o fortalecimento global de políticas de identidade.


Sobre a primeira, o predomínio individualista e econômico do chamado "neoliberalismo", onde o foco está na eficiência do mercado em permitir que indivíduos maximizem suas potencialidades, em detrimento do poder do Estado, que passa a ser visto como um impedimento, ataca em cheio os princípios do nacionalismo, enfraquecendo não somente a legitimidade estatal, mas também os laços estabelecidos entre Estado e Nação. Da mesma forma, o universalismo ameaça o nacionalismo à medida que desafia a própria noção de identidade nacional. Na Europa e nos Estados Unidos, o problema se relaciona com as políticas liberais para imigrantes e refugiados, não somente permitindo um afrouxamento da entrada desses nos países, mas também defendendo os direitos de imigrantes ilegais e intervenções internacionais em nome dos direitos humanos. No Brasil, a tensão se expressa, por exemplo, na questão ecológica e a preservação da Amazônia, tema no qual o governo Jair Bolsonaro apresenta posicionamento tipicamente nacionalista.


O terceiro elemento do avanço demasiado do liberalismo é o surgimento de uma elite transnacional. Para Mearsheimer, uma das consequências mais graves da globalização econômica para o nacionalismo é esse novo grupo de atores globais de altíssimo poder econômico que tendem a se identificar mais entre si do que com seus compatriotas e que muitas vezes defendem suas fortunas em detrimento da situação econômica nacional. Trata-se da construção cotidiana de uma identidade cosmopolita onde o fazer parte significa falar inglês fluente, frequentar as mesmas escolas e universidades, ter as mesmas fontes de instrução e informação e, principalmente, defender políticas neoliberais para a economia.


Finalmente, Mearsheimer aponta para o fortalecimento das políticas de identidade ao redor do mundo, em especial no Ocidente, como mais uma forte ameaça à ideologia nacionalista. Não à toa, trata-se de outro tema no qual o governo Jair Bolsonaro apresenta posicionamento nitidamente reativo. Para o autor, as políticas de identidade têm como foco os direitos individuais, mesmo que voltadas também para o reconhecimento de grupos marginalizados. Nesse contexto, os atores engajados com esse tipo de política são em geral hostis ao nacionalismo quando estão em jogo suas próprias identidades. Em última instância, a lealdade se transporta da nação para o grupo social ao qual o indivíduo pertence e busca reconhecimento.


Assim, de volta aos eventos de 2016, o Brexit e a eleição de Donald Trump são fenômenos políticos que, para John Mearsheimer, devem ser compreendidos em meio às tensões entre liberalismo e nacionalismo, que crescem a partir do avanço liberal empreendido após o fim da Guerra Fria. "Nós nunca vamos entregar a soberania da América a uma burocracia global não eleita e que não presta contas a ninguém", afirmou Donald Trump, em 2018. "Nós rejeitamos a ideologia do globalismo e abraçamos a doutrina do patriotismo".


Às vésperas do bicentenário da Independência, de que forma podemos pensar o atual contexto brasileiro a partir do modelo interpretativo de Mearsheimer? Para abordar a questão, é preciso trazer outro autor, o antropólogo argentino Néstor García Canclini. Como demonstra em sua obra seminal "Culturas híbridas", a dimensão local não é uma tábula rasa dos efeitos globais e a certa "hibridização" das culturas torna-se inevitável.


Dito isso, a faceta mais híbrida da eleição do nacionalista de extrema direita Jair Bolsonaro à Presidência brasileira em 2018 parece ser o amplo apoio que a plataforma obteve de setores liberais no Brasil. Se o antipetismo do momento explica em parte a opção, a necessidade obrigatória de existir uma noção específica de liberalismo que conviva com o apoio a Bolsonaro faz com que seja preciso ir além das interpretações conjunturais. Nesse sentido, uma visão absolutamente restrita da ideologia liberal às questões do mercado, em detrimento de princípios liberais como a igualdade de oportunidades ou os direitos dos indivíduos de poderem exercer suas potencialidades, se torna elemento chave desse processo. Sem as condições mínimas de desenvolver sua segurança econômica e bem-estar social, a grande parte da população brasileira parece afastada do foco dos nossos liberais. Dessa forma, um repensar dessa ideologia no Brasil se torna nada menos que fundamental para os próximos 200 anos de nossa Independência.


(Foto: EBC)

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